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Agora já não se matam galinhas.
A praça à quarta-feira, dois quilómetros e meio a pé com uma caixa de cartão fechada com guita, uns pintos que faziam um barulho semelhante ao da ocarina, quando nela entrava o ar soprado pelos lábios juntos e chocava com a água a chocalhar no barro — tudo morreu.
Para matar galinhas, criavam-se pintainhos, picavam-se talos de couve, faziam-se papas de farelos.
Para matar galinhas, havia uma casa com gente sempre a partir e a chegar, e então matavam-se galinhas — para o farnel das viagens, para o almoço de domingo, para o jantar de São João.
Matavam-se galinhas nas manhãs frescas de sábado, de bata e facalhão, um sol claro a entrar pela rede do galinheiro, as aves espantadas, penas no ar, um esguicho de sangue na parede suja.
Era tão bom matar galinhas.
Estou sentada na escada de três degraus do castelo. O vestido cor-de-rosa velho, de peito elástico e saia balão, tem uma das alças descaída, pondo-me o ombro esquerdo sem tira nenhuma, nu. É a minha vestimenta de grávida, assim o baptizei, depois de ter conseguido meter um chorão, um boneco grande, gordo e careca, entre o tecido e a minha barriga. Olho para a chorona, sem sinal de menino, e digo Cebolinha, ficas aí, e puxo a saia para baixo. E tiram-me o retrato.
São os anos do pânico perante as mãos engelhadas no banho de imersão, estou velhinha, mãe, e da asfixia debaixo das mantas, quando o pato pintado na parede do quarto parecia crescer muito e saltar da tinta para a cama para me assombrar. Quem tem medo do Donald?
São os anos das cheias na mata onde morreu o menino do barco a remos, e eu ainda não sei nadar. As árvores ganham uma aparência medonha, com os ramos despidos, o cocuruto a emergir no meio de um lodo escuro, e eu sempre à espera. O menino não me vem buscar?
Pintei as bochechas da Cebolinha com uma caneta de feltro, dei-lhe sardas, desenhei longas pestanas azuis, com outro marcador Pirata, e Cebolona, mulher grande, ficou deitada debaixo do retrato da avó Joaquina, à espera que chegasse a noite, que eu ligasse aquele candeeiro de velas falsas e a sombra dos óculos de massa escura da finada avançassem sobre ela, estóica Cebolona, valente Cebolona, que ali ficou sem se levantar.
No dia seguinte, levantei-me com a minha culpa, tranquila, e fui comer sopas de pão com cevada Pensal.