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Not quite sun, not quite the moon


Terça-feira, 16.06.15

De onde vêm os véus

c.JPG[Fotografia de TR]

 

A minha prima vai casar. O refrão é curto, e curto, tão pequeno era o dedito que ela erguia apontado a nós, enquanto trauteava a canção da Pastora. O refrão é curto, e está a toda a hora a exercer a sua condição, não me deixa esquecer e por um minuto descer outra vez a rampa do portão dos nossos avós e gritar rininha, anda cá. Anda cá, rininha, não fujas do quintal outra vez, olha a avó que te chama, um pé no pedal da Singer, outro do lado de cá, não fujas. Os bichos que vivem no canteiro da salsa e da hortelã, para quem construímos o mais belo reino de talos e terrões, esses que só a gente vê que digo aos bicharocos, rininha? Nunca mais posso descobrir tesouros no congelador do frigorífico do avô, aquele que trabalha sem luz e tem sacos do pão com moedas; eu não consigo encontrar tesouros sem ti, eu cá não sei acreditar. Olha ali, não estou a mentir: já não vejo a ameixoeira e da casa só me aparece a lareira e pouco mais. Que graça tem esconder-me agora, se não tenho onde me esconder?

Anda cá, rininha, não fujas do quintal outra vez, olha a avó que te chama. Está aqui, empoleirada na banqueta que comprámos em Pernes, para poder chegar-te aos cabelos e prender o véu nos caracóis loiros que hão-de escorrer-te pelo alvo pescoço outra vez.

 

Para Carina Ferreira, minha adorada prima, que casa dia 27 deste mês.

 

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Quarta-feira, 29.10.14

O estranho e absurdo caso dos sacos de plástico

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Massa pevide – vários pacotes; sabonetes Palmolive – dois; meia dúzia de ovos e um ramo de salsa; um molho de nabiças e três couves; uma nota verde dobrada em quatro. Refrigerantes gaseificados, de laranja e ananás. Sacos de plástico fechados com nó duplo. E uma continuação da avó.
À lista, só hoje – véspera de muitos anos de vida que não lhe posso cantar – pude acrescentar o único bem não perecível com o qual Israel sempre contou, ainda que nunca tenhamos conversado mais do que vinte minutos debaixo da velha ameixoeira – eu tinha pressa de chegar a um sítio que não fosse ali. Ela estava morta, e nós, Israel e eu, resumíamos então o nosso comércio à recolha quinzenal daqueles sacos. Começara aquela nossa idade, que substituía a do simples e vil metal, logo depois de ele ganhar um encarnado doentio na face, emagrecer de carnes e mais com o luto, uma bandeira caída, preta, com aquela pinta vermelha no topo da haste – o avô. Era estranho aquilo, tão estranho quão mais estranho era ter transaccionado pela primeira vez quatro beijos e um quarto de hora sentada à mesa da cozinha sem estranhar em nada aquela operação.
Agora parece-me tudo absurdo: absurdo quando aconteceu, absurdo juntar a avó àqueles sacos, absurdo o avô e os seus sacos, os meus sacos, os nossos sacos. E, no entanto, o absurdo maior, ela estava morta, sobrevivemos-lhe – ao absurdo e a ela. E então porque não posso eu acreditar no absurdo da continuação, na avó a continuar no avô durante aqueles anos, naquele comércio lúgubre que ambos alimentámos, sem jamais entendermos porquê?
Os sacos de plástico cumpriram a sua função.

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Segunda-feira, 22.09.14

Achar

Adamastor
[Fotografia de TR]

 

Mapa de França com punho cerrado
[Fotografia de TR]

 

Crocodilo sobre telhados alfacinhas
[Fotografia de TR]

 

A vida tem uma ordem natural e nós tendemos a fugir dela. Julgamos que chegámos aqui ainda agora e que vamos inventá-la. Mas não.

O avô encontrava todo o tipo de coisas. Era um recolector, como já disse, e isso fazia-me esperá-lo sempre de uma de duas maneiras. Com medo, porque ele era assustador e sabia ser mau e rebentava logo depois de nos regozijarmos com o lindo dia de sol, tal qual a trovoada que cai no instante em que escrevo; com expectativa, porque a lotaria dos humores comparecia quase na mesma medida da dos achados. Que têm hoje as mãos de Israel? Que metal ou borracha, que coisinha menor e cintilante o fez parar a marcha de olhos pregados no chão?
Ao contrário dele ou como ele, eu olho sempre para cima, lá bem para cima, e também encontro muitas coisas sem ter de inventar. Depois mostro-as, e há quem muito invente e procure — e nada veja. Nuvens há em todos os lugares do mundo. E nunca são iguais.

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Terça-feira, 12.08.14

Outro sítio qualquer

[Fotografia de TR]

 

O marmoreado corpo do Quim, estendido nas lajes a apanhar os intermitentes riscos de luz que os vidros coavam, a água da piscina parada, as bóias cor de tijolo atrás dos cinco púlpitos das pistas olímpicas, os calções com o atilho enlaçado a desenharem um triângulo liso e húmido, transparente, conspurcado.
Desenhou um quarto de Lua no ar, desceu até tocar com a testa larga nos ladrilhos vidrados  e não voltou.
Içaram-no junto às escadas de metal, isto anos antes de eu lá ter rasgado a carne do joelho direito e ouvir o Vítor Speedo dizer «salta outra vez, não é preciso curativo, o cloro desinfecta, cura». Desinfecta, e eu ainda o estou a ouvir, hoje de manhã e neste instante em que olho para a cicatriz que ficou e penso no Quim — cura.
Pousaram-no, insuflavam-lhe o peito, ao Quim. Alguns de nós ainda a correr, desapercebidos, quer dizer, não, não desapercebidos: víamo-lo deitado e puxado e não abria os olhos e havia um rapaz que lhe soprava para dentro, dobrado sobre ele, com as bochechas tal qual as nossas a encher um balão. A Dona Lucinda, que vinha ajudar a guardar-nos, gritou «acabou-se a brincadeira!» Não desapercebidos.
Depois há um clarão, e não sei quanto tempo passado ambulâncias e nós cá fora, o bando da primeira classe sob um céu encoberto, expulsos, obrigados a ficar junto à piscina dos pequeninos. Foi ali que Sofia e Sílvia prestaram esclarecimentos à Rádio Voz, muito explicadas nos seus seis anos, disputando o microfone do repórter, enquanto eu, sentada na borda da piscina seca, batia com o pé na superfície rugosa, empenhada em acabar com uma lasca de tinta solta, empenhadíssima.
Rodei o pescoço e voltei a olhar. O Quim já estava noutro sítio qualquer.

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Domingo, 13.07.14

Tempo

Calçada portuguesa e folhas de jacarandá

[Fotografia de TR]

 

Os tempos são três: presente das coisas passadas,
presente das presentes, presente das futuras.

Santo Agostinho, Confissões

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Terça-feira, 08.07.14

Aqui, ali

Quando hoje de manhã por fim entrei no táxi, faltaria à verdade se não dissesse que me lembrei dos bichos, das bolas rotas e de nós, correndo ou parados, brincando às estátuas ali. Mas depois o motorista retomou a enjoativa picardia meteorológica, eu entrei em automático e disse qualquer coisa sobre o índice de pluviosidade nos verões de Portugal Continental, bateram as 10h00, menos uma nos Açores, e o Canto esfumou-se.
Era uma tarde assim, como esta de 2014 em que o calor voltou. O televisor estava ligado a uma extensão quilométrica, pousado em cima do alto degrau da antiga pensão. Em cima do alcatrão, sentados à chinês sobre uma manta minderica, estávamos nós. Nós éramos os primos, de idades várias, com os nossos calções de algodão, as nossas blusas de alças e os nossos pés descalços. Éramos todos, embora fosse raro – ou mesmo nunca tenha acontecido – estarmos todos ali. Nós éramos todos e a felicidade era isso. Isso e ver os Jogos Sem Fronteiras ali.
Atrás dos primos, em frente à velha pensão, a casa da complacente Lina, a casa que era só metade, como se estivéssemos a olhar para um daqueles desenhos da nossa infância e o cortássemos ao meio, deixando a vivenda partida, porque a outra parte era da parceira de confisco de bola do avô Israel, a tia Violeta. À direita, o quintal do fantasma do seu falecido marido, o tio Filipe, que eu vi cirandar muitas vezes naquela terra batida, com um bando de cães todos vindos com ele do Além. A fechar, a casa dos avós, com couves e roseiras que viviam à vez, e a da tia Florinda, sem jardim nenhum.
Hoje morreu a última habitante do nosso Canto, a última das tias. Pouco interessa agora o que foi feito de nós ou dela, porque já não estamos ali. Já ninguém está ali. E então ali não é um lugar imaginado e não consegue ser só um lugar real. Ali é o Canto, que é a Vida, e as estátuas que lá somos hoje, vistos daqui.

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Quinta-feira, 15.05.14

Instantâneos Primaveris [IV]

 

 

 

 

 

 

 

 

[Fotografias de TR]

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Segunda-feira, 05.05.14

Instantâneos Primaveris [III]

 

 

 

 

 

 

 

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Terça-feira, 29.04.14

Instantâneos Primaveris [II]

 

 

 

 

 

 

 

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Quinta-feira, 24.04.14

Instantâneos Primaveris

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 [Fotografias de TR]

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Quarta-feira, 16.04.14

A Pintassilgo

Pintassilgo soava mal, mas ficou.
No quarto 548, Rosalindo continuava em dúvida quanto à melhor posição para a fixação do reposteiro e isso causava-lhe grande ansiedade. Não admitia que Graça pudesse regressar e vê-lo naquilo, com a sanefa e os pequeníssimos clips espalhados na alcatifa, o folho murcho e amarfanhado aos pés, derrotado. Por Deus, tinha de concentrar-se e tomar uma decisão, ponderada, racional, com base nos cálculos que tinha apontado no bloco pautado. Sim, era absolutamente fundamental que o reposteiro não quebrasse a luz em demasia, que o folho caísse em largo arco 20 centímetros abaixo do topo, criando um efeito de auréola à luz das primeiras horas da tarde, entre a cama e as duas poltronas de saia. Estando o 548 destinado a ser plateau de nubentes, o caso era seríssimo, e Rosalindo não podia falhar.
Berbequins eram como robôs de cozinha, ou pelo menos foi assim que venceu o medo e subiu o escadote, com um orgulho tolo e solitário, pensando no Exterminador. De costas, se lá estivéssemos, deitados no chão, víamos a coroa de cabelo do marido de Graça como farta cabeleira, com traseira longa e ripada, ignorando por completo, assim, a calvície em avançado estado que lhe tomava já o espaço entre a testa e o cocuruto. Vemos, então, Rosalindo fixando o reposteiro, compondo depois as várias camadas de tecido, na verdade três, que vestiam a janela, tudo para chegarmos a este momento, agora, em que pendura o afamado folho, constante no projecto inicial daquela suite, por ele concebido, com o qual conseguira, fazendo um brilharete na agência bancária, arrematar o crédito e convencer o gerente de que aquele era um empreendimento fulcral para o lugar de Viço, entre uma nacional e a entrada para a auto-estrada. Para isso, em muito contribuíra a esposa, também presente no acto, assistindo à comunicação do futuro dono da Pintassilgo com breves ah e puxando, na recta final, do lenço bordado com as iniciais do casal que lhe dera sua mãe no dia da boda. As mesmas letras que ele, em gestos graciosos, desenhou no ar, não sem antes, evidentemente, ter treinado longas horas para que conseguisse fazê-lo em espelho para o moço ver e perceber.
Quando Graça regressou ao piso 5, o elevador não lhe deu música e a chave-mestra encravou. Possante, mandou-se contra a porta, que destrancou. Foi encontrar Rosalindo, na King-size vinda de New Jersey, envergando lingerie rosa, com os berloques dos cortinados presos nos pulsos e os olhos cerrados. Desmaiou, que é diferente de desfalecer, e era assim mesmo que tinha de proceder. Quando voltou a si, Rosalindo estava de pé, eram 15h00 e auréola era perfeita. Beijaram-se muito nas faces, sentaram-se nas poltronas e Graça ajeitou-lhe o papillon. A Pintassilgo estava pronta para a inauguração.

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Sexta-feira, 04.04.14

Cruzeiro

Aquelas amoras silvestres, tão poucas, os espinhos espetados na sebe logo ao início da subida, os meus dedos dos pés encavalitados rompendo a lona das sapatilhas brancas, o cheiro dos pinhões esmagados pela pedra que partia a pinha e deixava a riqueza daquele dia desfeita ao aparecer, tudo aquilo era a primeira e única manhã do ano em que íamos ao Cruzeiro.
Naquele tempo, era longe. A rua calcetada, só ela, era larga e funda, ia da barraca do Zé Moé, que ainda não se tinha imolado com as mantas de papa em chamas, e onde agora estão dois bancos e um canteiro com sardinheiras de que ninguém quer saber, até à íngreme estrada alcatroada, que continua a desembocar na capela dos acabados de morrer, a do Santo António, a das velhas piadeiras e do calor dos funerais estivais, na terra em que todos resolviam partir nas minhas férias de Verão.
Era longe, o Blacky corria, gordo de todas sopas de pão que eu lhe despejava na tigela, mais orelhudo que nunca naquele fresco da soltura, talvez se lembrasse de ter estado ali há trezentos e tal dias, cumprindo as vésperas de mais quatro estações de ferrolho e corrente no pátio da nossa casa. Seixos, alcatrão, brita, e finalmente o chão forrado a terra barrenta. Eu ia atrás dele, prevendo a tintura de iodo que haveria de me escorrer pelas pernas e fazer menos vivas as minhas joelheiras, e foi o que de mais parecido às cenas dos livros de aventuras de jovenzinhos eu identifiquei, eu e o cão, serra acima, correndo, num contentamento esquecido, a arfar.
Era bom que chegar fosse tão longe ainda.

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Terça-feira, 01.04.14

O tiro pela culatra

Último dia antes de Abril.
 [Fotografia de TR]

 

A espingarda estava no sótão. Israel subiu as escadas de três em três degraus, pernalta e lesto, e foi buscá-la. Apareceu primeiro o cano, empurrando a porta de latão como um anjo segura a seta, e a seguir o rosto do avô, só uma redonda e enrugada bola de carne vermelha, os olhos raiados a raiarem a cara e o corpo inteiro, a gente já vai ver quem é que está grávida, e voltou a pisar o mármore, agora pah, pah, pah, devagar, e era como no Dallas, sem cavalo e sem chapéu, mamã.
A mãe, terrificada, agarrada ao marido, ao seu casaco de bombazina, tão enjoada com aquele odor retardado a tabaco, não se decidia a vomitar ou a desmaiar. O pai era grande, mas encolheu-se e deu corda aos sapatinhos 46 quando Albertina gritou: para casa da Gracinha, Jesus!
Foram pela rampa-esfola-joelhos e entraram na velha pensão,
onde então morava a prima Graça. A grávida nos braços de Humberto, já muito achacada, a avó em prantos, e o diabo encarnado em assalto às portadas de madeira, pum, pum, pum, vou-te matar.
Não sei bem quem queria ele matar, se a grávida, se o filho, se a mulher, mas ficaram cá todos para depois me contar. Foi a 1 de Abril de 1982, quando a minha mãe desceu ao quintal para me anunciar. O avô, tomado pelo tinto de Alpiarça e num clássico ataque de fúria, sabe lá Deus o que lhe ia na cachola, resolveu que era hora de atirar. Salvou-nos a Gracinha, que nos acolheu, à mãe, à avó e ao pai, no quartinho de baixo da pensão.
E eu lá berrei, sete meses passados, nascida e avisada, quando ainda era uma esperança, de que a verdade não salvou ninguém.

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Quinta-feira, 13.03.14

Primavera

Já rebentou?
Assim começava a Primavera nos antigos Casais Galegos, com a pergunta que todos os anos, na véspera de mais um aniversário, eu lhe fazia. Já rebentou, avó?
O Olho da Mari’Paula iluminava-se em Março; a nascente rebentava antes mas era preciso esperar pelo Sol. Saíamos as duas, com uma merenda embrulhada numa rodilha, em direcção ao depósito da aldeia. Aí, descíamos as escadinhas até à estrada dos curtumes e metíamos por um caminho de terra e pó ladeado por azedas e papoilas. Por essa altura, ela ia a meio da história do casamento da minha tia, uma das minhas preferidas, cujo ponto alto era imaginar a cena em que Noémia abria a prenda do padrinho rico, com enorme expectativa, e descobria uma torradeira.
Lembro-me dos ramos de flores que compúnhamos e de tudo ser luz à chegada às grandes pedras, passada a ponte de madeira. Ao contrário da mata minderica, que ensombrara os meus primeiros anos de vida, aquela nascente, viva ou ainda grávida de caudal, era alegria pura.
Naquele último passeio, antes de eu crescer tudo o que não devia, sentámo-nos à beira d’água, em silêncio, escutando o curso do pequeno rio galgar os seixos, cair nas redondas lagoas que se formavam depois do primeiro declive. O mundo corria, lá longe, ali ao lado, trazido até nós pelo vento, com a sirene da uma da tarde a tocar. Ela despertou, apressada, e apiedou-se de nós, havemos de cá voltar.

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Segunda-feira, 10.03.14

A Fénix e o Obituário

 [Fotografia de TR]

Não nasci onde queria, em casa. A mãe chamou o Zé da carrinha, ou foi o pai, nem sei. Meteram-se no carro e deram oitenta à hora, grande velocidade nas estradas daquela época. Estava frio, e ela levava uma camisa de dormir turca, que guarda até hoje. Não gritou, pariu-me, e eu passei a estar aqui. É tramado.
Aos sete anos, o meu pai partiu para outro país. Fiquei, como ficou ela, então já de separação escrita e — para mim — sempre tinha sido assim. Não me recordo da casa. É tramado.
Na semana passada, a minha mãe partiu para outro país. Fiquei, como antes, aqui, o único sítio em que me conheço; aqui, onde não há casa; aqui, onde a comiseração enche dias e haverá, um dia, um lugar onde queira nascer.
Nem sempre se pode escolher. Chama-se a isto, meus queridos aduladores de manchetes e sound bites, crescer.

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Segunda-feira, 24.02.14

Nem o pai morre nem a gente almoça

Paula Rego, Anjo, 1998

Agora já não se matam galinhas.
A praça à quarta-feira, dois quilómetros e meio a pé com uma caixa de cartão fechada com guita, uns pintos que faziam um barulho semelhante ao da ocarina, quando nela entrava o ar soprado pelos lábios juntos e chocava com a água a chocalhar no barro — tudo morreu.
Para matar galinhas, criavam-se pintainhos, picavam-se talos de couve, faziam-se papas de farelos.
Para matar galinhas, havia uma casa com gente sempre a partir e a chegar, e então matavam-se galinhas — para o farnel das viagens, para o almoço de domingo, para o jantar de São João.
Matavam-se galinhas nas manhãs frescas de sábado, de bata e facalhão, um sol claro a entrar pela rede do galinheiro, as aves espantadas, penas no ar, um esguicho de sangue na parede suja.
Era tão bom matar galinhas.

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Quarta-feira, 12.02.14

Cebolinha

Estou sentada na escada de três degraus do castelo. O vestido cor-de-rosa velho, de peito elástico e saia balão, tem uma das alças descaída, pondo-me o ombro esquerdo sem tira nenhuma, nu. É a minha vestimenta de grávida, assim o baptizei, depois de ter conseguido meter um chorão, um boneco grande, gordo e careca, entre o tecido e a minha barriga. Olho para a chorona, sem sinal de menino, e digo Cebolinha, ficas aí, e puxo a saia para baixo. E tiram-me o retrato.
São os anos do pânico perante as mãos engelhadas no banho de imersão, estou velhinha, mãe, e da asfixia debaixo das mantas, quando o pato pintado na parede do quarto parecia crescer muito e saltar da tinta para a cama para me assombrar. Quem tem medo do Donald?
São os anos das cheias na mata onde morreu o menino do barco a remos, e eu ainda não sei nadar. As árvores ganham uma aparência medonha, com os ramos despidos, o cocuruto a emergir no meio de um lodo escuro, e eu sempre à espera. O menino não me vem buscar?
Pintei as bochechas da Cebolinha com uma caneta de feltro, dei-lhe sardas, desenhei longas pestanas azuis, com outro marcador Pirata, e Cebolona, mulher grande, ficou deitada debaixo do retrato da avó Joaquina, à espera que chegasse a noite, que eu ligasse aquele candeeiro de velas falsas e a sombra dos óculos de massa escura da finada avançassem sobre ela, estóica Cebolona, valente Cebolona, que ali ficou sem se levantar.
No dia seguinte, levantei-me com a minha culpa, tranquila, e fui comer sopas de pão com cevada Pensal.

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Quinta-feira, 30.01.14

Nada na mão

 

Fui feita por duas pessoas que comiam Nestum à colherada em frente ao bib-bip de que o pai tanto gostava. A mãe tinha um medo paralisador (há-os diferentes) das enguias que, cortadas ao meio, num prato de loiça com malmequeres pirosos, jaziam em grande movida no frigorífico. Na porta estava colada uma enfiada da primeira colecção de cromos que os adolescentes começaram a juntar depois de 1 de Abril do ano em que nasci, horas de um dia ingrato para ela, véspera de mais um aniversário e saudosa data da mentira que haveria de parir com um quilo quinhentos e tal gramas, no único Inverno em que nevou naquele lugar.
No livro de assentos não consta que tenha feito má cara ao Toino Zé quando passou com o carro de mão pelo canto dos avós, estando eu sentada na rampa do portão, batendo palmas como se tudo nos meus treze meses de vida tivesse sido possível para chegar só àquele momento. Há uma descrição da primeira árvore de Natal, de como as luzinhas me fascinavam dos olhos à boca, o perigo de morte numa dentada só de gengivas, mole mas concretizada com afinco; ainda uma nota fora das linhas, pela mão da mãe, que encontrou espaço no pé de página para registar a ausência de um presépio. Registar uma ausência é dar e tirar, sem possibilidade de lembrança que não esta.
Quando o Toino Zé dobrou a esquina, com a boina ruça já incorporada no escasso e gorduroso cabelo, eu tinha crescido e ele continuava igual — sozinho. Diminuído, coitado, como dizia a tia Florinda, emprestando uma pena vazia, de remediada sã, à qualificação. Veio ter comigo, e eu deixei-me estar. Foi dele o meu maior terror, depois uma piedade grande e fingida, até poder negar-lhe uma moeda e secar finalmente o meu músculo cardíaco com o louco do carrinho de mão.

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Segunda-feira, 27.01.14

Enxertar

Já era Junho e o colchão de esponja, forrado a flanela, com um padrão de ramos intrincados e castanho-escuros e peixes miúdos tão a despropósito, talvez uma memória fabricada do tempo em que o tio-avô era barqueiro no Alviela e trazia enguias sempre-feias, sempre-vivas do rio, dizia, o colchão de esponja estava debaixo da ameixoeira. Era uma árvore enxertada, como são todas as árvores de família, e elas, as famílias, também. O avô tinha feito nascer do tronco-pai um outro, mais fino, de onde brotavam as ameixas amarelas, mais raras que as vermelhas, tardias, mas sempre maiores. Era um desses frutos que eu trincava naquela manhã, deitada de bruços no colchão, enquanto a avó depenava um frango gordíssimo sentada no banco de madeira, daqueles que pareciam feitos para casas de bonecas do meu tamanho.
Lembrei-me disto, talvez pela primeira vez, no dia em que escrevi sobre as flores. Na altura não encontrei lógica nesse encadeamento de recordações, mas agora que rememoro aquela manhã, com o cheiro das ameixas muito forte e doce, tão doce que as abas do nariz se levantam enquanto escrevo, não vem a lógica encontrar-me lá, mas depois do almoço dessa tarde de Junho, dirigindo-me à loja de flores da Lurdes Praieira. Não era florista, a Lurdes, mas vendia flores e arranjava-se naquilo como podia. Era mãe da outra Tânia, a que a avó, muitos anos antes, tinha trazido pela mão durante um minuto, pelo caminho de seixos que ia do jardim-de-infância à rua principal, findo o qual tinha dito à magricela de segundo nome Sofia, mas tu não és a minha Tânia.
O bolso do meu vestido evasée estava cheio com as moedas que tinha conseguido tirar através da ranhura do porco de barro, pondo-o de cabeça para baixo e batendo-lhe ferozmente com a mão direita no rabito gordo. Tinha prometido não violar o mealheiro, e aquela era a segunda vez que incumpria, sendo agora a culpa muito menor quando comparada com o primeiro furto, que levara a cabo com o canivete suíço de Israel, método proveitoso para o saque da nota de 1000 escudos, aplicada na compra de vários Calipos e Pernas de Pau.
Entrei na loja, despejei a minha fortuna em cima do balcão de inox e disse: quero o ramo mais bonito para a minha avó. A Lurdes Praieira, com o seu jeito despachado e aquela pronúncia cantada da Nazaré, contou as moedas em voz alta; eu ouvia o tilintar e o meu coração.
Abri o portão de latão e tenho a certeza de que lá da cozinha, pela janela forrada a rede, ela me viu. Não porque ela tenha parado de cortar o feijão-verde em finíssimos bocados, como só ela cortou, mas porque a gente sabe coisas quando está inundada de esperanças, sem uma pinga de racionalização. Era um bouquet de rosas vermelhas, e a avó disse: são as primeiras flores que me dão.

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Sexta-feira, 10.01.14

A filha do coveiro

Tinha a cabeça aberta, via-se bocados de algodão. Saíam do escalpe misturados com o cabelo curto, embebido num óleo qualquer, e aquela matéria pastosa, feita de dourado e escuro, lembrava-me a mioleira de porco a queimar no fogão da minha avó. Junto à parte mais carnuda da orelha esquerda, o início de uma carreira de pontos, que seguia pescoço abaixo, até desaparecer no colarinho da camisa. Os óculos de lentes grossas, quando examinados de muito perto, eram um caleidoscópio. Minúsculas pingas de sangue, riscos, as pálpebras pareciam mexer-se, umas pestanas medonhas, as pálpebras mexiam-se, um sinal castanho na cana do nariz. As unhas estavam amarelas, notava-se muito, aqueles dedos grossos entrançados ao peito. Uma saia verde-escura, uns collants de mousse brancos, estética certa, estática, atroz.
Isto foi depois de vários tiros de espingarda na Casa do Povo, de ter tombado gorda e pesada na corticite ao lado do balcão. Gritaram muito, lá, mas com a cova aberta gritaram ainda mais, pensei que a tia tinha morrido também, fechou os olhos e caiu para cima do monte de terra, olhei para ela, tão limpinha e vestida de preto, olhei para a Maria Dolores dentro do caixão, afinal são isto os mortos, o tio era o coveiro, esperei que naquele dia pegasse na pá para enterrar a filha suja também.

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por Tânia Raposo


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