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Not quite sun, not quite the moon



Sexta-feira, 22.11.13

Arraiel

Sentei-me no chão de tacos e puxei do cesto. Entre uma série de correspondência muito variada (envelopes de hospital, bilhetes da comissão de festas da terra, até uma folha A5 avisando da recepção de uma espingarda para conserto), encontrei uma carta endereçada a Arraiel, filho da Maria do Céu, rua perto dos correios. Sem remetente.
Nas quatro páginas manuscritas, a jovem, sem nunca se identificar — mas sabendo que Arraiel conhecia bem quem lhe escrevia —, pedia encarecidamente que o meu avô, então ainda um rapaz novo mas já palpitante nubente, intercedesse junto de um tal Manuel para que de uma vez por todas ele fosse fiel ao coração. Não queria a correspondente que Arraiel forçasse o outro a nada, muito menos que o desencaminhasse, que o obrigasse a sair de casa, a deixar para trás a esposa e os filhos. Não, a jovem pedia apenas que Manuel fosse fiel ao coração, devendo depois o meu avô transmitir a uma amiga comum o que tinha sido candidamente ditado. Informava, para tal, a que horas pegava e despegava da fábrica, dando mais pormenores sobre a hora de almoço e as extraordinárias, que fazia ordinariamente na esperança de criar tesouro suficiente para fugir com Manuel e montar um lar. O pai dela — avisava, sublinhando — matá-la-ia se descobrisse; escrevesse o meu avô para a amiga, de modo a que o sobrescrito chegasse entre segunda e quarta-feira, para que a emissária pudesse encontrá-la, sem conflito de agendas laborais, num cruzamento entre a fábrica e a drogaria.
Agradece a Deus e a um santo, cujo nome não me recordo, e muito, ainda mais, a Arraiel, o mais santo e louvável de todos, mesmo no final da enumeração.
Que tenho eu com isto? Nada, estão todos mortos. Resta saber se o pai a matou ou não.

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por T.



por Tânia Raposo


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